O sarampo é uma doença extremamente contagiosa e perigosa. Mas existe outra que nos deveria preocupar mais: o extremismo. Contagioso, perigoso e tanto ou mais mortífero.
Os limites da ideia de liberdade individual
A beleza do contributo individual de cada um com o mínimo risco associado à vacinação protege-nos a todos de males muito maiores.
Claro que existem aqueles que dizem “não” e se aproveitam da imunidade de grupo para passearem sem fazerem a sua parte. Até um dia. Até ao dia em que vêem morrer um filho ou, pior ainda, contribuem para uma morte de alguém ali ao lado que não se podia mesmo vacinar. Adicionalmente, contribuem ainda para mais um atraso na erradicação possível de uma doença a nível mundial. 134.000 vidas em 2015, mais todas as complicações possíveis nos que resistiram.
Newsflash: há limites para a liberdade individual.
Cada um de nós implicitamente cede e acomoda-se para viver em sociedade até certo ponto. Se há áreas em que podemos permitir mais amplitude de escolha (sob evolução constante e debate associado), há outras circunstâncias que temos que dizer colectivamente: não. Em 1962, face aos 150 óbitos por difteria e 264 por tétano (mortes hediondas) dois anos antes, decidiu-se tornar obrigatória a vacina contra as duas doenças.
Perante a impossibilidade de proteger pessoas de outra forma que não seja uma cobertura vacinal elevada, poderemos ter que ceder liberdade de escolha caso a adesão voluntária falhe. Isto chama-se viver em sociedade. Fazer compromissos. Não sacrificar pessoas em nome do livre arbítrio – com destaque para aqueles que nem estão sob a nossa tutela.
E obrigatório não é compulsivo: quem decide não vacinar-se pode optar por sair da sociedade em questão ou sujeitarem-se àquelas que são as consequências dessa escolha tal como descrito no DL de 1962, evitando provocar problemas a terceiros. Por problemas, leia-se eventualmente mortes.
O altar de sacrifício do discurso anti-ciência
Reconheço todo o direito a cada um optar por práticas sem evidência científica se isso lhes resolve o problema. Com algumas excepções:
a) não coloquem outras vidas em perigo, incluindo os próprios filhos e sobretudo outros;
b) não venham pedir comparticipação pública ou isenção para práticas que não têm evidência associada;
c) reconheçam que a propaganda de soluções milagrosas não só é fraudulenta e lesiva dos doentes como também se pode revelar mortífera no incentivo à procastinação de um correcto diagnóstico e tratamento.
Infelizmente, as três excepções são actualmente uma realidade triste em Portugal.
As tragédias pessoais são terreno fértil para a busca de justificações. Onde estiverem disponíveis. Ouviram-se relatos mirabolantes e acusações completamente infundadas às vacinas. Não responsabilizo tanto estes pais como os meios de comunicação social que fazem equivaler opiniões e observações pessoais a estudos cientificamente válidos.
Responsabilizo mais a corja (pouco visível cá felizmente) que ganha dinheiro à custa destas alegações e tragédias, não perdendo a oportunidade de publicitar mais mentiras a troco de uns tostões. São, na essência, potenciais assassinos profissionais.
Reconhecer as devidas limitações dos estudos é também prestar a devida homenagem ao método científico. A confirmação ou refutação são sempre possíveis, desde que fundamentadas em factos e métodos correctos.
A pergunta que se segue é: qual é a alternativa? Pensamento mágico? Crendices? Teorias da conspiração? Voltarmos a recorrer ao destino para justificar o facto de morrer uma criança não vacinada? Por mim, não, obrigado!
Não existe liberdade sem responsabilidade. E acredito que a nossa responsabilidade é deixar de compactuar com contos de fada lesivos para todos.
– Dr. Bernardo Gomes – Especialista de Saúde Pública –